ACADEMIA SUL-BRASILEIRA DE LETRAS
CINZA
“Memento homo... pulvis es...” Lembra-te, homem,... és pó...
Tempo de cinzas. Tempo de pó. O carnaval já findou. Não há como segurá-lo. Esvaiu-se entre os dedos.
O corpo não agüentaria tanta ginga, tanto sonho. Somos fracos demais para o brinquedo total. A festa vem depois. “Apenas para sonhar, estamos um dia na terra” diziam os tlamatinimes astecas. “Para conquistar um coração forte como a árvore e a rocha, e um rosto compreensivo”. É o tempo da metánoia, da conversão, diziam os semitas.
- Converter os olhos, as mãos, o coração de onde e para onde?
- Para o rosto do outro que, ansioso, o aguarda, bem em sua frente.
Tempo de sair de si... Tempo para recuperar a si mesmo... desde a dis-persão, a dis-tração... Tempo de limpar o ouvido para ouvir a voz, o clamor do outro. Tempo de aguçar o olhar para poder ver o sorriso e a lágrima do outro. Tempo de aguçar o estômago para perceber a fome do outro. Tempo para descobrir a cabeça e a pele para perceber o vento, a água e o sol que nasce e sopram para todos. Tempo de con-versão. Não apenas tempo de re-versão.
A dispersão solipsista, individualista, egolátrica é tão grande, que o homem, sozinho, rodeando ao redor de si mesmo como cachorrinho atrás de sua cola, perdeu o horizonte. E o horizonte é aquilo a partir do qual nós localizamos tudo. O que está perto. O que está longe. O que está acima. O que está abaixo. Sem o horizonte a visão não vê, o tato não sente, o ouvido não ouve. Sem o horizonte não há caminho, nem caminhar. Não há passo. Não há dança. Não há descanso possível. Nem alegria. Nem a felicidade de ter chegado. E quanto mais largo o horizonte, maior o caminho e a possibilidade de ser.
O horizonte nem sempre é lógico, luminoso, unívoco. Mas é sempre convite, convocação para ser. O horizonte, porque transcende a tudo, tudo aproxima, tudo identifica e diferencia.
Pois este horizonte não é fabricação nossa. Não é fruto de nossas mãos. Ele se nos dá como possibilidade de sermos nós mesmos, diante do outro, face-a-face com o outro. Ele nos dá a possibilidade de reconhecimento de nossa pequenez, insuficiência, de nossa necessidade, de que somos peregrinos, pó.
Afundados que estamos no poço escuro de nossos devaneios, confundindo tropelias com caminhadas, solidariedade com esperteza, exploração do trabalho alheio com progresso, riqueza e produção nem sempre divisamos a porta do poço e uma nesga sequer de horizonte que nos permita ver flores pássaros e borboletas, estrelas e arrebóis, na bela parábola de “As rãs e o poço” de Rubem Alves. E nem percebemos o nosso charco, que passa a ser o melhor mundo em que vivemos, nem a estreiteza insalubre do poço, nosso pó. As “leis” de nosso ponço passam a ser o critério do certo e errado. A falcatrua, o mensalão, a propina, o engodo, a impunidade, a fraude passam a ser “normais”. O poço será o critério da “relatividade” de todas as coisas.
Sim, é preciso experimentar um pouco de cinza sobre nossa cabeça, sobre nossa fronte, para que saibamos da profundidade de nosso poço.
As cinzas, porém, não valem por si mesmas. O pó não vale pelo pó que é. Nem o jejum, a “penitência”, a dor têm sentido em si mesmas. A “quaresma” enquanto fecunda preparação para a Páscoa da Ressurreição não consiste apenas em abstinências e jejuns, em sacrifícios, como auto-salvação proposta pelos exploradores da dor alheia na Civilização Ocidental, tornando assim inútil a Ressurreição. Cristo nos salvou porque sofreu, dizem eles, e não porque ressuscitou. A dor, o sacrifício salvam... Isto, quem ensinou não foi o Cristianismo, foi o Estado de Cristandade e que a fez ideologia do mundo ocidental. O sadismo e o masoquismo deixaram de ser doentios. Passaram a ser o “destino” de todo o homem na terra.
A experiência do pó, da cinza, medida no horizonte da Ressurreição e da Vida, faz-se antecipação da Ressurreição. A espera não se faz mera expectativa. Faz-se esperança. Saída efetiva do poço. Encontro efetivo com os outros no fundamento do amor, da justiça, da verdade, e, assim, da fraternidade. O amor é o horizonte. E “o nome de Deus é Amor”.
A Academia Sul-Brasileira de Letras, independentemente deste ou daquele rito, convida você a olhar para a boca do poço e a experimentar o barro do fundo como suporte para sair para fora e a dançar sob a luz das estrelas. Atrelemos nosso arado a uma estrela para que a terra possa produzir pão e festa de solidariedade.
Jandir João Zanotelli.